sexta-feira, 10 de julho de 2015

Estrutura familiar e personalidade do Jovem toxicodependente – onde está o cerne do Problema?

Rómulo Muthemba 

Movidos pelo crescente contacto com o fenómeno da toxicodependência, e principalmente de jovens consumidores e em idades mais precoces, propomos uma reflexão sobre a multiplicidade e multidensionalidade dos factores envolvidos no início, desenvolvimento e manifestação da toxicodepência. 

Sugerimos a partida, não só um debate virado para a clínica (tratamento, reabilitação, recuperação) de jovens toxicodependentes, mas sobretudo, um debate que se alargue na busca das melhores estratégias de combate ao consumo de substâncias psicoactivas em Moçambique. 

Temos a noção de que este debate é também de natureza política, ultrapassando em muito o âmbito extritamente técnico-científico da psiquiatria, psicologia e saúde mental. 

Cada vez mais temos recebido em contexto clínico, jovens adolescentes, pais, mães e familiares pedindo ajuda porque o jovem está com alguma alteração do comportamento, ou foi descoberto um consumo, ou ainda a escola desvendou algo sobre isso. 

Confrontamo-nos com pais aflitos, muitas vezes incrédulos porque nos dizem que “nunca lhe faltou nada... sempre teve tudo...está na melhor escola...”, de entre outros argumentos usados pelos pais para compreender o problema.
Quando a questão ainda não resultou em “exposição” significativa para a família (roubos, escola, sociedade), estes (pais) por uma questão defensiva, fecham-se, tentam resolver com os recursos familiares (reuniões, chamadas de atenção, castigos ou punições, mudanças de escola) ou através da minimização do problema: “o meu filho droga-se porcausa das más companhias, droga-se porcausa dos amigos...”.

 Os medicamentos caseiros, sociais e familiares (tratamentos) também são coerentes com estas premissas: afasta-te dos amigos, muda de escola e, se for melhor: para o estrangeiro! 
A postura do própio Jovem é condizente e cúmplice com toda a constelação familiar: “o problema não é meu, é das más companhias, eu consigo parar, não tenho nenhum problema, a escola está a exagerar, os pais às vezes exageram”

Nós os profissionais da saúde, muitas vezes também entramos na redundante “cantiga”, nessa cumplicidade patológica, fazendo atribuições causais, cruxificando os pais e tratadores, determinando através de uma avaliação psicológica o perfil do jovem, logo – a origem da toxidependência. Descodificamos mal o pedido de ajuda e seguimos a risca os pressupostos dos nossos manuais de tratamento – “não há pedido/motivação – não há tratamento”, “infelizmente, não podemos fazer nada..”

A outra justificação “válida” para que os profissionais retirem o “peso da consiciência”, é a falta de serviços organizados, habilitados e uma estrutura apropriada para atender a estes problemas dos jovens adolescentes. Justificativas para os profisssionais da área da saúde são inúmeras, encontramos um campo fértil pois temos a convicção que o problema não vai muito para além do tratamento e alarga-se para o meio, o contacto do jovem com a droga, a falta de combate ao marqueteiro que ronda as escolas e alicia os meninos, etc. 

Infelizmente a etiologia do alcoolismo e outras toxicodependências é ainda desconhecida, como de resto são desconhecidas as causas da totalidade das perturbações psiquiátricas, mas andam muito por volta de influências de factores biológicos, psicológicos e até sociais.

 A outra questão clinicamente justificada para o não tratamento da toxicodependência e alguma aversão e pessimismo dos profissionais da sáude em relação aos toxicodependentes é de que “não coolaboram”, ou que “a toxicodependência não têm cura”. São verdades clinicamente observáveis, mas que não se deve interpretá-las a risca.

 Sobre isto, Milheiro (1999) salienta que “em várias séries conclui-se que cerca de 50% dos doentes obtêm uma evolução favorável” (p.104). Se nos despirmos dessas “mentalizações” e atribuições todas e nos centrarmos no trabalho clínico de reparação do jovem toxicodependente, percebemos que estamos num contexto escorregadio, mas possível. Se eles rejeitam, não estão motivados, talvez o objectivo primeiro do tratamento seja, não tratar, mas criar condições para o tratamento, trabalhando no fortalecimento da aliança e cativando a motivação, expondo as feridas e despertando a necessidade de “tratar aquilo que eles dizem não querer tratar”

Em primeiro lugar, concordamos em parte com Fleming (1995) quando realça que “os toxicodependentes são o produto mais bem acabado de uma sociedade onde progressivamente o valor dos laços e das relações afectivas se vai perdendo e que elegeu o químico e o consumo como valores de felicidade” (p.13).

Em parte, diria porque constatamos no trabalho clínico que há de facto uma multiplicidade de factores, incluindo o modo de funcionamento psicológico (personalidade), mas julgamos que um dos principais aspectos é a existência da própia droga. “Só há lugar para abuso ou dependência de substâncias quando se dá o encontro de um organismo vivo com uma dessas substâncias”

Não me parece que exista uma personalidade toxicodependente. Da experiência e contacto com estes jovens percebemos que existem vários tipos de funcionamento psicológico (personalidades) e até de categorias psicopatológicas.

Do ponto de vista objectivo, diríamos que se colocam alguns aspectos: a existência da substância que actua sobre o sistema nervoso central, criando alterações importantes e o consumo que tem a ver com o própio sujeito (momento, história, susceptibilidade biopsico-social).

Neste âmbito, não poderíamos deixar de reafirmar que a adolescência é uma fase de desenvolvimento que marca a passagem para a adultícia, um mundo desconhecido que é enfrentado pelo jovem através do recurso ao potencial (força, vigor, busca, descoberta), mas também com as fragilidades inerentes ao própio processo de crescimento (medo, receio, ansiedade, instabilidade identitária) que podem-o tornar vulnerável aos medicamentos (drogas) para a busca de socialização, integração no grupo ou mesmo curar feridas narcísicas (auto-estima, auto-conceito). 

Aqui, calculamos que todo um historial de vida, competências inerentes ao própio jovem entram em jogo. Se a experimentação (sexual, drogas, etc) é considerada normal (mas com alto risco) nesta fase, vemos que temos jovens que experimentam e nunca mais voltam a consumir, e outros que embarcam para uma viagem sem volta, com consumos ainda mais intensos, sofrendo (fazendo sofrer) e arcando com todas as despesas dolorosas (a aflição para tratar do mal estar causado pela abstinência, a dificuldade para encontrar dinheiro para a compra da substância, os conflitos familiares e com a justiça, polícia, etc). 

A pressão dos pares e a necessidade de integração grupal é visível, em muitos dos casos de iniciação e manutenção do comportamento adictivo. 

O terreno pelo qual se ergue a instituição toxicodependência é complexo, desde a droga que tem uma importância fundamental na economia psíquica do adolescente, ajudandoo a “viajar”, ficar eufórico, fugir e escapar dos problemas, ou combater a depressão e mal estar interior, permitindo-o aguentar/suportar os vazios e dores da vida emergente. Em termos psicológicos, parece-me que o reforço positivo é dos mais importante e está relacionado com os efeitos “agradáveis” obtidos com a droga. 

A passagem para um segundo momento está garantida. Aí, o jovem segue um círculo vicioso fechado: consumo, pensar e procurar “orientar-se” para encontrar dinheiro para consumir, agir lícita ou ilicitamente com esse propósito, consumo e aí por diante. 

Já realçamos várias vezes junto dos colegas clínicos de outras áreas que o tratamento da toxicodependência, principalmente nos jovens adolescentes deve ser uma combinação de modelos sistêmicos, cognitivo-comportamentais e dinâmicos. Os medicamentos (nenhum) consegue eliminar a vontade e necessidade de consumir a droga. Muitos, têm unicamente o objectivo de suprimir os sintomas de abstinência. O essencial mesmo é o trabalho psicoterapêutico que poderá ajudar no melhoramento da auto-estima, resistência a frustração, fortalecimento do “eu”, mecanismos de cooping de entre outros.

 As medidas punitivas, por sí só não trarão efeito terapêutico, há uma errónea concepção de que o toxicodependente se vá tratar apenas porque o juiz determinou, a escola suspendeu, a polícia prendeu ou os pais o expulsaram de casa.

 Tratamento 
Num terreno escorregadio que é a toxicodependência, com poucas certezas, ainda nos restam algumas convicções baseadas nas constatações clínicas: 1) A abstinência é fundamental desde o início do tratamento; 2) A avaliação da motivação para tratamento, da situação familiar, o exame psicológico e da saúde física e orgância é incontornável; 3) o tratamento bio-médico (através de ansiolíticos, hipnóticos, analgésicos e agonistas, etc) são importantes “apenas” para a supressão dos sintomas de abstinência. Já nos alertava Milheiro (1999) que a designação «desintoxicar», embora comumente utilizada é infeliz, na medida que induz em erro ao fazer pensar que é possível através de fármacos «limpar» o organismo da droga. Entretanto, também possuí um efeito placebo fundamental para o sujeito e família pela percepção do “corpo limpo”

Toda a intervenção deve priorizar a manutenção da abstinência, através da medicação, por exemplo o uso de antagonistas que bloqueiam os receptores opiáceos no SNC, a intervenção psicoterapêutica com inclusão da família, a reabilitação psicossocial.

 Referências Bibliográficas 
1. Fleming, M(1995). Família e toxicodependência. Coimbra: Almedina. 
2. Milheiro, J (1999). Loucos são os outros. Lisboa: Climepsi. 

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