Rómulo Muthemba
Movidos pelo crescente contacto com o fenómeno da toxicodependência, e
principalmente de jovens consumidores e em idades mais precoces, propomos uma
reflexão sobre a multiplicidade e multidensionalidade dos factores envolvidos no início,
desenvolvimento e manifestação da toxicodepência.
Sugerimos a partida, não só um debate virado para a clínica (tratamento, reabilitação,
recuperação) de jovens toxicodependentes, mas sobretudo, um debate que se alargue na
busca das melhores estratégias de combate ao consumo de substâncias psicoactivas em
Moçambique.
Temos a noção de que este debate é também de natureza política, ultrapassando em
muito o âmbito extritamente técnico-científico da psiquiatria, psicologia e saúde mental.
Cada vez mais temos recebido em contexto clínico, jovens adolescentes, pais, mães e
familiares pedindo ajuda porque o jovem está com alguma alteração do comportamento,
ou foi descoberto um consumo, ou ainda a escola desvendou algo sobre isso.
Confrontamo-nos com pais aflitos, muitas vezes incrédulos porque nos dizem que
“nunca lhe faltou nada... sempre teve tudo...está na melhor escola...”, de entre outros
argumentos usados pelos pais para compreender o problema.
Quando a questão ainda não resultou em “exposição” significativa para a família
(roubos, escola, sociedade), estes (pais) por uma questão defensiva, fecham-se, tentam
resolver com os recursos familiares (reuniões, chamadas de atenção, castigos ou
punições, mudanças de escola) ou através da minimização do problema: “o meu filho
droga-se porcausa das más companhias, droga-se porcausa dos amigos...”.
Os medicamentos caseiros, sociais e familiares (tratamentos) também são coerentes
com estas premissas: afasta-te dos amigos, muda de escola e, se for melhor: para o
estrangeiro!
A postura do própio Jovem é condizente e cúmplice com toda a constelação familiar: “o
problema não é meu, é das más companhias, eu consigo parar, não tenho nenhum
problema, a escola está a exagerar, os pais às vezes exageram”.
Nós os profissionais da saúde, muitas vezes também entramos na redundante “cantiga”,
nessa cumplicidade patológica, fazendo atribuições causais, cruxificando os pais e
tratadores, determinando através de uma avaliação psicológica o perfil do jovem, logo –
a origem da toxidependência. Descodificamos mal o pedido de ajuda e seguimos a risca
os pressupostos dos nossos manuais de tratamento – “não há pedido/motivação – não
há tratamento”, “infelizmente, não podemos fazer nada..”!
A outra justificação “válida” para que os profissionais retirem o “peso da consiciência”, é
a falta de serviços organizados, habilitados e uma estrutura apropriada para atender a
estes problemas dos jovens adolescentes. Justificativas para os profisssionais da área da
saúde são inúmeras, encontramos um campo fértil pois temos a convicção que o
problema não vai muito para além do tratamento e alarga-se para o meio, o contacto do
jovem com a droga, a falta de combate ao marqueteiro que ronda as escolas e alicia os
meninos, etc.
Infelizmente a etiologia do alcoolismo e outras toxicodependências é ainda
desconhecida, como de resto são desconhecidas as causas da totalidade das
perturbações psiquiátricas, mas andam muito por volta de influências de factores
biológicos, psicológicos e até sociais.
A outra questão clinicamente justificada para o não tratamento da toxicodependência e
alguma aversão e pessimismo dos profissionais da sáude em relação aos
toxicodependentes é de que “não coolaboram”, ou que “a toxicodependência não têm
cura”. São verdades clinicamente observáveis, mas que não se deve interpretá-las a
risca.
Sobre isto, Milheiro (1999) salienta que “em várias séries conclui-se que cerca de 50%
dos doentes obtêm uma evolução favorável” (p.104).
Se nos despirmos dessas “mentalizações” e atribuições todas e nos centrarmos no
trabalho clínico de reparação do jovem toxicodependente, percebemos que estamos
num contexto escorregadio, mas possível. Se eles rejeitam, não estão motivados, talvez o
objectivo primeiro do tratamento seja, não tratar, mas criar condições para o
tratamento, trabalhando no fortalecimento da aliança e cativando a motivação,
expondo as feridas e despertando a necessidade de “tratar aquilo que eles dizem não
querer tratar”.
Em primeiro lugar, concordamos em parte com Fleming (1995) quando realça que “os
toxicodependentes são o produto mais bem acabado de uma sociedade onde
progressivamente o valor dos laços e das relações afectivas se vai perdendo e que elegeu o
químico e o consumo como valores de felicidade” (p.13).
Em parte, diria porque constatamos no trabalho clínico que há de facto uma
multiplicidade de factores, incluindo o modo de funcionamento psicológico
(personalidade), mas julgamos que um dos principais aspectos é a existência da própia
droga. “Só há lugar para abuso ou dependência de substâncias quando se dá o encontro de
um organismo vivo com uma dessas substâncias”.
Não me parece que exista uma personalidade toxicodependente. Da experiência e
contacto com estes jovens percebemos que existem vários tipos de funcionamento
psicológico (personalidades) e até de categorias psicopatológicas.
Do ponto de vista objectivo, diríamos que se colocam alguns aspectos: a existência da
substância que actua sobre o sistema nervoso central, criando alterações importantes e
o consumo que tem a ver com o própio sujeito (momento, história, susceptibilidade biopsico-social).
Neste âmbito, não poderíamos deixar de reafirmar que a adolescência é uma fase de
desenvolvimento que marca a passagem para a adultícia, um mundo desconhecido que é
enfrentado pelo jovem através do recurso ao potencial (força, vigor, busca, descoberta),
mas também com as fragilidades inerentes ao própio processo de crescimento (medo,
receio, ansiedade, instabilidade identitária) que podem-o tornar vulnerável aos
medicamentos (drogas) para a busca de socialização, integração no grupo ou mesmo
curar feridas narcísicas (auto-estima, auto-conceito).
Aqui, calculamos que todo um historial de vida, competências inerentes ao própio jovem
entram em jogo. Se a experimentação (sexual, drogas, etc) é considerada normal (mas
com alto risco) nesta fase, vemos que temos jovens que experimentam e nunca mais
voltam a consumir, e outros que embarcam para uma viagem sem volta, com consumos
ainda mais intensos, sofrendo (fazendo sofrer) e arcando com todas as despesas
dolorosas (a aflição para tratar do mal estar causado pela abstinência, a dificuldade para
encontrar dinheiro para a compra da substância, os conflitos familiares e com a justiça,
polícia, etc).
A pressão dos pares e a necessidade de integração grupal é visível, em muitos dos casos
de iniciação e manutenção do comportamento adictivo.
O terreno pelo qual se ergue a instituição toxicodependência é complexo, desde a droga
que tem uma importância fundamental na economia psíquica do adolescente, ajudandoo
a “viajar”, ficar eufórico, fugir e escapar dos problemas, ou combater a depressão e
mal estar interior, permitindo-o aguentar/suportar os vazios e dores da vida
emergente. Em termos psicológicos, parece-me que o reforço positivo é dos mais
importante e está relacionado com os efeitos “agradáveis” obtidos com a droga.
A passagem para um segundo momento está garantida. Aí, o jovem segue um círculo
vicioso fechado: consumo, pensar e procurar “orientar-se” para encontrar dinheiro
para consumir, agir lícita ou ilicitamente com esse propósito, consumo e aí por diante.
Já realçamos várias vezes junto dos colegas clínicos de outras áreas que o tratamento da
toxicodependência, principalmente nos jovens adolescentes deve ser uma combinação
de modelos sistêmicos, cognitivo-comportamentais e dinâmicos. Os medicamentos
(nenhum) consegue eliminar a vontade e necessidade de consumir a droga. Muitos, têm
unicamente o objectivo de suprimir os sintomas de abstinência. O essencial mesmo é o
trabalho psicoterapêutico que poderá ajudar no melhoramento da auto-estima,
resistência a frustração, fortalecimento do “eu”, mecanismos de cooping de entre
outros.
As medidas punitivas, por sí só não trarão efeito terapêutico, há uma errónea concepção
de que o toxicodependente se vá tratar apenas porque o juiz determinou, a escola
suspendeu, a polícia prendeu ou os pais o expulsaram de casa.
Tratamento
Num terreno escorregadio que é a toxicodependência, com poucas certezas, ainda nos
restam algumas convicções baseadas nas constatações clínicas: 1) A abstinência é
fundamental desde o início do tratamento; 2) A avaliação da motivação para
tratamento, da situação familiar, o exame psicológico e da saúde física e orgância é
incontornável; 3) o tratamento bio-médico (através de ansiolíticos, hipnóticos,
analgésicos e agonistas, etc) são importantes “apenas” para a supressão dos sintomas de
abstinência. Já nos alertava Milheiro (1999) que a designação «desintoxicar», embora
comumente utilizada é infeliz, na medida que induz em erro ao fazer pensar que é
possível através de fármacos «limpar» o organismo da droga. Entretanto, também
possuí um efeito placebo fundamental para o sujeito e família pela percepção do “corpo
limpo”.
Toda a intervenção deve priorizar a manutenção da abstinência, através da medicação,
por exemplo o uso de antagonistas que bloqueiam os receptores opiáceos no SNC, a
intervenção psicoterapêutica com inclusão da família, a reabilitação psicossocial.
Referências Bibliográficas
1. Fleming, M(1995). Família e toxicodependência. Coimbra: Almedina.
2. Milheiro, J (1999). Loucos são os outros. Lisboa: Climepsi.
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